Quem passa em frente ao número 971 da Rua XV de Novembro provavelmente não saiba, e talvez tampouco quem esteja sentado em uma das 472 poltronas do Auditório Salvador de Ferrante, o Guairinha. Mas por baixo daquele palco passa o Rio Belém. Canalizado na década de 1940, muitos acreditam que aquelas águas ajudam na acústica do Guairinha, que completa 70 anos em 2024.
O auditório foi o primeiro espaço do Centro Cultural Teatro Guaíra (CCTG) a abrir para o público. Foi inaugurado oficialmente em 19 de dezembro de 1954, recebendo na plateia o então presidente do Brasil, Café Filho, e o à época governador do Paraná Bento Munhoz da Rocha Neto, idealizador da construção.
O Teatro Guaíra já tinha quase 70 anos de história quando a nova sede começou a ser erguida, em 1952, como parte das comemorações do centenário de emancipação política do Paraná — celebrado em 1953. O edifício faz parte de uma série de prédios públicos projetados para marcar a data cívica, que deu a Curitiba o Centro Cívico, com o Palácio Iguaçu, a Praça 19 de Dezembro e a Biblioteca Pública do Paraná.
Esta reportagem, que fala sobre a arquitetura modernista que é marca do Guaíra e apresenta os quatro espaços do complexo, faz parte da série de reportagens “Guaíra 140”, da Agência Estadual de Notícias (AEN). Além do Guairinha, também compõem o CCTG o Guairão, o Miniauditório e o Teatro José Maria Santos.
A série celebra os 140 anos da instituição, metade deles no atual endereço, além dos 70 anos do Guairinha e dos 50 anos do Guairão. Ela mostra um pouco da história, curiosidades, bastidores, espetáculos marcantes e das pessoas que fazem parte de um dos principais espaços culturais do Brasil.
ARQUITETURA– Tombado pelo Patrimônio Cultural do Paraná, o prédio que abriga o Teatro Guaíra poderia ter sido totalmente diferente da arquitetura modernista assinada por Rubens Meister. Em 1948, duas décadas depois da desativação do antigo teatro, que ficava no terreno que hoje abriga a Biblioteca Pública do Paraná, o então governador Moysés Lupion lançou um concurso público para contratar o projeto arquitetônico do novo espaço.
O projeto vencedor propunha a construção de um edifício no estilo art déco na Praça Rui Barbosa. A construção, porém, não foi feita e a proposta só seria retomada na década de 1950, quando Bento Munhoz da Rocha Neto assumiu o Governo do Paraná, às vésperas do centenário da emancipação política do Estado.
A construção do novo teatro oficial do Paraná foi uma das propostas de Munhoz da Rocha para essa celebração, que fazia parte também de um projeto de modernização defendido pelo governador. “Ele falava que queria usar a arquitetura modernista para modernizar a cidade de Curitiba e o Estado do Paraná”, afirma o diretor artístico do CCTG, Áldice Lopes.
Ele escolheu então o terceiro colocado no concurso promovido por Lupion, o projeto do recém-formado Rubens Meister, em conjunto com o arquiteto Eugênio Oswaldo Grandinetti. As formas curvas e os espaços amplos, que trazem leveza ao concreto que forma sua estrutura, são algumas marcas da arquitetura modernista. Mas são as especificidades técnicas que tornam o Guaíra tão relevante para as artes.
“Eu acho que o nosso grande Rubens Meister foi muito feliz nessa concepção”, afirma o diretor-presidente do CCTG, Cleverson Cavalheiro. “Obviamente teve muito conhecimento, pesquisa e a sorte da escolha do local. Essa junção de coisas positivas tornaram esse espaço um dos grandes teatros do Brasil”.
E a arquitetura tem um diferencial na parte técnica. A grande cúpula que é vista externamente compõe as caixas cênicas do Guairão e do Guairinha. É ali que ficam os urdimentos, armações posicionadas ao longo do teto do palco, que permitem subir e descer cenários e equipamentos que são utilizadas nas produções.
Responsável pela assinatura de luz de mais de 600 peças, pelo menos 100 delas no Teatro Guaíra, o iluminador Beto Bruel iniciou sua carreira em 1971, no Guairinha, e se tornou um dos grandes nomes da técnica teatral brasileira. “Eu chamo o Guairinha de nossa catedral, porque todos os outros são paróquias. É muito difícil, dentro do contexto brasileiro, ter um teatro com uma estrutura como a do Guaíra, que se mantém muito relevante no cenário cultural”, brinca ele.
“O Rubens Meister fez um projeto muito arrojado e muito bom tecnicamente. Foi um marco para a época, entregando aquela arquitetura em 1954, enquanto Brasília só sairia em 1960”, ressalta Bruel. “O projeto do Guairinha é muito bom em termos de ângulo, de qualquer lugar que se jogue a luz dá certo, além de ter também uma acústica muito boa. Da mesma forma com o Guairão, que tem todo aquele tamanho e uma acústica impecável”.
GUAIRINHA– Inaugurado oficialmente no final de 1954, foi no ano seguinte que o Guairinha recebeu sua primeira produção teatral, com a estreia, em março de 1955, da peça “Os Inocentes”. O texto baseado na obra “A Volta do Parafuso”, do escritor Henry James, nascido nos Estados Unidos e naturalizado britânico, foi montado pela companhia Dulcina, da atriz Dulcina de Moraes, fundadora da Fundação Brasileira de Teatro.
E a boa experiência da atriz, que é considerada uma das grandes damas do teatro brasileiro, alçou o Pequeno Auditório do Teatro Guaíra ao circuito artístico nacional. “A partir da estreia desse espetáculo, a dona Dulcina elogia muito a acústica do auditório, que ela compara a grandes teatros, como o de Montevidéu, no Uruguai, e de Buenos Aires, na Argentina. Assim, Curitiba passa a entrar no roteiro das grandes companhias do Brasil, que passaram a circular por aqui”, conta o diretor artístico do CCTT, Áldice Lopes.
“Então vinha Maria Della Costa, Bibi Ferreira, Tônia Carrero, Paulo Autran, todas as grandes companhias começaram a frequentar o auditório. Porque a beleza dele é a qualidade acústica, que é sensacional, e por não ter uma plateia tão grande”, salienta Lopes. “O Guairinha foi concebido essencialmente para espetáculos de teatro. Diferente do Guairão, que é um espaço maior, com um palco que foi pensado para grandes orquestras, bailados, óperas e grandes shows”.
Áldice brinca que a influência das águas do Rio Belém na acústica do auditório é uma lenda, mas que pode ter um fundo de verdade. O Theatro da Paz, em Belém do Pará, tem uma piscina com 37 mil litros de água embaixo do palco, que também dizem contribuir com a qualidade do som. “É uma lenda que todo mundo fala, mas se você for perceber, tudo que é oco, que é cavernoso, tem melhor reverberação acústica. Então pode ser que sim, que o Rio Belém influencie nisso”, diz.
Ele foi batizado em homenagem ao ator Salvador de Ferrante, pioneiro do teatro paranaense e fundador da Sociedade Teatral Renascença, que montou cerca de 90 peças no primeiro prédio que abrigou o Teatro Guaíra. Foi inclusive sua morte, em 1935, que acabou desmobilizando as montagens no local, que culminaram na desativação do teatro dois anos depois.
“O Salvador de Ferrante foi uma figura muito importante. Ele era funcionário dos Correios e Telégrafos e criou esse grupo, que fazia as encenações na primeira década de 1900 até 1935”, explica Lopes. “Ele foi um grande precursor nas artes cênicas paranaenses e, logo que o Guairinha foi inaugurado, a classe artística se mobilizou para dar o nome ao auditório de Salvador de Ferrante”.